Há algum tempo participei de um curso de meditação muito especial. Lá aprendi muitas coisas valiosas por meio de um retiro espiritual com ensinamentos do Budismo e que adotava o voto de silêncio. No começo eu não entendi muito bem o motivo de restrições como: levantar às 4h da manhã, tomar o desjejum às 6h e fazer a última refeição do dia até o meio dia. Não usar adereços, maquiagens, perfumes e, especialmente, não poder falar com absolutamente ninguém. O toque de despertar nos acordava às 4h da manhã e meditávamos até às 21h, com alguns pequenos intervalos. Um processo interno intenso que buscava ver as coisas como realmente são – uma das mais antigas técnicas de meditação da Índia (a Vipassana).
No primeiro dia percebi que a nossa mente é tagarela. Isso mesmo. Ela fala sem parar. Você já tentou parar de pensar? Só de tentar não pensar, você já está pensando. É muito difícil tentar calar essa mente que fala sem parar. Quando tentamos fazer isso, ela nos conta histórias do nosso passado. Faz a gente recordar de momentos que não lembrávamos há tempos. Fala sobre medos e ansiedades em relação ao futuro, deixando a gente ansiosos com coisas que ainda não aconteceram. Ela cria teorias da conspiração sobre diversos assuntos. Ela faz você sorrir lembrando de coisas engraçadas. E quando você se dá conta, está ali tagarelando com essa mente que não parou de falar um minuto. Foi então que percebi o motivo de tantas restrições no curso de meditação. Quanto mais elementos ao nosso redor, como celular e conversas com outras pessoas, mais alimento damos para essa mente tagarela seguir falando, falando, falando.
No entanto, parte fundamental desta técnica é conseguir silenciar essa mente tagarela. E é ai que nos deparamos com uma mente selvagem. Sabe aquele cavalo forte e bonito criado solto na floresta e que não permite ser montado por ninguém? Que nunca teve limites impostos e que sempre foi livre fazer o que quisesse? Pois bem, essa é nossa mente. Uma selvagem que não quer ser domada. Quando você tenta silenciar sua mente, mesmo que por alguns instantes, ela se demonstra esse cavalo selvagem que não quer ser domado. Ela vai te levar para lugares que você sequer sabia que existia. Ela vai distorcer a realidade e te deixar confuso. Ela vai te fazer dormir. Ela vai te fazer chorar. Ela vai te fazer sorrir. Ela vai criar uma trilogia de ficção científica inteirinha na sua mente. Ela vai te deixar em pânico com a possibilidade de muitas coisas acontecerem. Ela vai te fazer sofrer, porque ela não quer ser domada. Ela não foi treinada para isso.
Nesse processo você percebe que além de tagarela e selvagem, sua mente também é grosseira. E não é grosseira de falar coisas rudes. Ela é grosseira porque está acostumada com estímulos intensos e grosseiros. Você já tentou ouvir sons bem sutis e que poucas pessoas conseguem ouvir? Já tentou sentir um perfume bem suave de uma flor? Ou comer uma salada sem temperos, valorizando o sabor de cada folha, legume ou verdura? Nós acostumamos nossa mente a estímulos constantes. Especialmente com a era da tecnologia em que não vivemos mais sem celular e internet. Você já observou as pessoas em uma fila? Todas estão vidradas em seus celulares, adormecendo suas mentes enquanto aguardam sua vez de serem atendidas. Somos super estimulados o tempo inteiro. Temos muita dificuldade em apenas contemplar as coisas. Parar e olhar o pôr do sol, por exemplo, sem tirar uma bela fotografia para postar em alguma mídia social. Essa é a realidade das grandes cidades e de muitas pequenas também. Isso faz com que a gente perca a sensibilidade para o sutil, para o delicado. Precisamos de estímulos grosseiros para que algo ganhe nossa atenção.
Quando falo de sutilezas, me refiro as coisas simples do cotidiano que permeiam nossa existência e que não percebemos. Por exemplo, a respiração: elemento crucial para nossa sobrevivência. Você sabia que um ser humano adulto respira entre 10 a 12 mil litros de ar por dia? Você consegue perceber esse ar entrando em suas narinas? Consegue sentir a temperatura desse ar tocando seu nariz por dentro? Ele é frio? Morno? Quente? E quando esse ar sai pelas suas narinas, após passar por seus pulmões, ele sai com a mesma temperatura que entrou? Você consegue sentir os batimentos do seu coração sem colocar a mão no peito ou sem ele estar acelerado por alguma atividade física intensa ou por alguma situação de extrema tensão? Você pode sentir o quente fluindo por suas veias? Tudo isso parece uma loucura para você? “É impossível sentir essas coisas”, você pode me dizer. E eu vou te responder que você pensa assim porque nossa mente é grosseira. Não está preparada a perceber estímulos sutis de coisas que acontecem conosco desde o dia em que nascemos. Ela não foi treinada para isso. Não foi domada a ser menos tagarela e menos grosseira. Mas, sim, tudo isso é possível à partir de muito treino e paciência.
Esses foram os primeiros ensinamentos que tive na busca por uma consciência maior da minha mente. Foi uma das experiências mais transformadoras que tive. Perceber como não temos consciência e domínio da nossa própria mente foi um processo dolorido por semanas. Mas, aprendi nesse curso que devemos sorrir e ter paciência conosco. Somos todos crianças ainda buscando a evolução e o aprendizado neste universo. Cada um tem seu tempo e sua maneira. A mente humana é muito poderosa e desde a antiguidade foi objeto de interesse de grandes pensadores. Para Platão, a mente era uma parte fundamental da estrutura da alma, e ele discutiu sobre isso em várias de suas obras, especialmente em “A República” e “Fedro”.
Platão concebia a mente como sendo composta por três partes principais: a razão (ou logos), a vontade (ou thumos) e os desejos (ou epithumiai). Essas três partes constituíam a alma humana e desempenhavam diferentes papéis na busca pela harmonia e pelo bem supremo.
A razão é a parte mais alta da mente, associada ao pensamento racional, à sabedoria e à capacidade de discernimento. A razão buscava a verdade e o conhecimento absoluto das formas ideais e era considerada a parte mais nobre da alma. A vontade, ou coragem, está relacionada ao espírito guerreiro e à busca pela honra e justiça. Esta parte da mente é responsável por desejos mais nobres, como a coragem, a ambição e a determinação. Os desejos são a parte mais básica e inferior da mente, associada aos apetites físicos e às emoções. Eles incluem desejos por prazer, comida, sexo e outras necessidades físicas e materiais.
Platão acreditava que a virtude e a felicidade estavam relacionadas à harmonia e ao equilíbrio entre essas três partes da mente. Para ele, o papel da pessoa filósofa era treinar a razão para governar sobre a vontade e os desejos, permitindo assim que a alma alcançasse seu potencial máximo e se elevasse em direção ao mundo das formas ideais. Essa visão da mente como parte integrante da alma e como um veículo para a busca do conhecimento e da virtude foi fundamental na filosofia platônica e influenciou profundamente o pensamento ocidental.
Essa pensata de hoje é um convite para que você, cara leitora e caro leitor, possa refletir sobre essa mente tagarela, selvagem e grosseira. Tente identificar estes elementos na sua mente. E tente, aos poucos, exercitar essa percepção mais sutil sobre si e sobre o meio em que você vive. Esteja mais alerta, tenha mais atenção. Esteja presente no agora. Não deixe que as angústias em relação ao futuro e nem que as tristezas em relação ao passado te impeçam de prosseguir. Do mesmo modo, não permita que as alegrias do passado e as boas expectativas em relação ao futuro, lhe atrapalhem de enxergar as mudanças necessárias que a vida impõe. Busque a harmonia entre a razão, a vontade e os desejos. Procure conhecer sua mente, aprender sobre ela e ter controle sobre essa poderosa e fundamental parte de você.
Como citar essa pensata: Barbosa, Aline dos Santos. Tagarela, Selvagem e Grosseira. Quem? Sua mente!. Schola Akadémia, v.3, n.2, p. 1-3. Disponível em: www.scholaakademia.com, 2024.
Sobre a autora
Aline Barbosa
Filósofa, Doutora e Mestra em Administração de Empresas. Bacharel em Comunicação Social. Atualmente cursando Licenciatura em História. É professora, Orientadora e Mentora Acadêmica. Tem interesse de pesquisa nas temáticas sobre Filosofia, Ética, Amor, Desigualdade de Gênero nas Organizações e Sociedade, Violência contra as Mulheres, Carreiras não Tradicionais, Estratégia e de Sustentabilidade, e publica estudos nacionais e internacionais sobre estes tópicos.