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Quero a calma. Tenho a tempestade. Aprendo com ambas. Qual melhor me define?

Ana Beatriz era uma mulher gentil e educada, com um sorriso sempre pronto para iluminar o dia de quem quer que fosse. No entanto, sua rotina diária no metrô de uma grande cidade a colocava à prova constantemente. Todos os dias, ela enfrentava o desafio de pegar o metrô lotado para ir e voltar do trabalho. O vagão do trem era um campo de batalha, onde a cortesia muitas vezes era deixada de lado em meio à luta por espaço.

Inicialmente, Ana tentava manter sua postura amável, esperando pacientemente na plataforma pela oportunidade de entrar no trem. No entanto, ela logo percebeu que sua gentileza estava lhe custando tempo precioso e causando atrasos constantes em seu trabalho. Foi então que ela começou a agir de maneira diferente e a cada manhã se preparava para a batalha que se aproximava. Quando as portas do trem se abriam, ela precisava ser rápida e decidida.

Empurrar, usando força física para abrir caminho entre a multidão, tornou-se parte de sua rotina. Cada dia era uma luta para garantir um lugar no vagão. Às vezes, ela sentia-se culpada por sua própria mudança de comportamento. Aquela não era a pessoa que ela queria ser, mas as circunstâncias pareciam forçá-la a agir de forma diferente.

Mesmo assim, ela nunca perdeu completamente sua gentileza. Entre os empurrões e cotoveladas, ela ainda encontrava momentos para sorrir e pedir desculpas quando acidentalmente esbarrava em alguém. Ela sabia que, apesar das circunstâncias adversas, ainda podia manter sua integridade. No entanto, a cada dia que passava, Ana Beatriz se perguntava até quando precisaria agir de maneira tão diferente do que realmente era?

A Ética Kantiana fundamenta-se na ideia de que devemos agir de acordo com o dever, fazendo o que é certo independentemente do contexto ou das consequências. Segundo Kant, a moralidade é universal e baseada na razão, e devemos agir de forma a tratar cada indivíduo como um fim em si mesmo, e não como um meio para atingir nossos próprios fins.

No entanto, uma frase de Viola Davis em seu livro “Em busca de mim” lança luz sobre uma realidade diferente. Ela expressa a ideia de que, em situações extremas, como na luta pela sobrevivência, a moralidade pode ceder lugar à necessidade urgente de garantir a própria existência. Nessas circunstâncias, as pessoas podem ser levadas a agir de maneiras que, em condições normais, não considerariam moralmente aceitáveis.

Ana Beatriz, a personagem da nossa história, é um exemplo claro dessa aparente dicotomia entre a Ética Kantiana e a realidade vivida. Diante do contexto desafiador do metrô lotado, ela se vê forçada a agir de maneira diferente do que “realmente é” para garantir sua própria sobrevivência no ambiente caótico do transporte público. A pressão das circunstâncias a leva a empurrar, lutar e agir de forma mais agressiva do que gostaria, comprometendo sua verdadeira natureza gentil e educada.

Isso nos leva a refletir sobre o fato de que os problemas nem sempre revelam nosso melhor lado. Em situações adversas, somos testados de maneiras que podem nos levar a agir de forma diferente, ou até mesmo contrária, aos nossos princípios morais e éticos. As dificuldades da vida muitas vezes nos obrigam a fazer escolhas difíceis, e nem sempre podemos manter o nível de integridade moral que idealizamos para nós mesmos. Além disso, as dificuldades e contextos ruins não necessariamente nos tornam pessoas melhores ou revelam o que há de melhor em nós.

Certamente você já se deparou com a afirmação de que é na adversidade que nosso caráter é moldado. No entanto, te convidamos a refletir sobre o seguinte:

Será que realmente é em ambientes turbulentos e conturbados, como um metrô lotado, que o melhor de nós floresce? Ou será que o melhor de nós se revela em ambientes onde desfrutamos de tranquilidade e serenidade para sermos verdadeiramente quem somos? Seria o meio do caminho o melhor modo de moldarmos nosso caráter?

Especialmente no sentido da última questão, Aristóteles nos ensina sobre a importância do equilíbrio como virtude. Sob essa ótica, estar em um ambiente equilibrado, rodeado por pessoas que nos apoiam e nos fazem bem, pode ser fundamental para formar quem somos e para influenciar positivamente nossas ações. Quando estamos em um contexto que favorece o florescimento de nossas virtudes, somos capazes de agir de acordo com nossos princípios morais e éticos, sem sermos compelidos pelas pressões externas.

O Estoicismo e o Budismo, por sua vez, nos ensinam que, por vezes, os maiores vilões de nossos pensamentos e ações não são os problemas em si, e sim a forma como os encaramos. Não podemos negar que as adversidades nos ensinam. Para salvar alguém em uma emergência podemos ver aflorada nossa coragem. Para inocentar uma pessoa honesta de uma acusação maldosa podemos usar o máximo de nosso senso de justiça. Para combater a fome em nossa cidade podemos exercer nossa virtude da solidariedade. E assim por diante.

Embora essas adversidades citadas permitiram o florescimento de nossas virtudes, devemos ter atenção ao fato de que determinadas situações adversas podem nos desafiar e nos levar a agir de maneira contrária aos nossos valores. Nesse caminho, o ambiente equilibrado e favorável revela-se como um tipo de possível antídoto para que possamos, verdadeiramente, demonstrar nosso melhor eu e viver de acordo com nossos princípios mais fortes.

Como citar essa pensata:  Barbosa, Aline dos Santos; Romani-Dias, Marcello. Quero a calma. Tenho a tempestade. Aprendo com ambas. Qual melhor me define? Schola Akadémia, v.3, n.4, p. 1-3. Disponível em: www.scholaakademia.com, 2024.

Sobre os autores

Aline Barbosa

Filósofa, Doutora e Mestra em Administração de Empresas. Bacharel em Comunicação Social. Atualmente cursando Licenciatura em História. É professora, Orientadora e Mentora Acadêmica. Tem interesse de pesquisa nas temáticas sobre Filosofia, Ética, Amor, Desigualdade de Gênero nas Organizações e Sociedade, Violência contra as Mulheres, Carreiras não Tradicionais, Estratégia e de Sustentabilidade, e publica estudos nacionais e internacionais sobre estes tópicos.

Marcello Romani-Dias

Filósofo, Doutor e Mestre em Administração de Empresas. Bacharel em Administração. Atualmente cursando Licenciatura em História. É Professor Titular nos Programas de Pós Graduação em Administração de Empresas e Gestão Ambiental da Universidade Positivo. Tem interesse de pesquisa nas temáticas sobre Filosofia, Ética, Virtudes, Estratégia e de Sustentabilidade, e publica estudos nacionais e internacionais sobre estes tópicos.

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