Catarina estava agora com 85 anos. Ela estava feliz, pois acabara de fazer aniversário, e em virtude dessa comemoração muitos familiares vieram de longe para visitá-la. Alguns, inclusive, optaram por esticar a visita por mais alguns dias na cidade de São Paulo, terra de Catarina. Foi nesse contexto que todos, com exceção da própria Catarina, receberam uma notícia muito dura. Mas, antes de tratarmos das intempéries que assolariam a vida da família, vamos resgatar parte da trajetória dessa grande mulher.
Descrever o que foi sua vida até aqueles 85 anos não é tarefa fácil, ao mesmo tempo em que a coerência de sua trajetória facilita, em alguma medida, tal tentativa. Catarina, a professora, lecionava desde seus 26 anos, era casada com Mario desde seus 22 anos, tinha dois filhos, teve uma série de cães em sua jornada, muitos e muitos livros, e uma porção generosa de admiradores de seu caráter e de seu intelecto. Aliás, uma brincadeira frequente que os amigos faziam com Catarina era a de tentar acertar se o maior destaque da amiga era sua honestidade ou sua inteligência.
Nunca chegaram a uma conclusão plausível. De todo modo, Catarina era uma daquelas pessoas de serenidade contagiante, daquelas que nos trazem a sensação de que a ATARAXIA, isto é, o alcance de uma alma livre de perturbações, é possível para nós. Tratava-se de uma mulher que fez valer a pena este curto período a que chamamos de vida. As pessoas, quando estavam em sua companhia, sentiam-se mais inteligentes, principalmente pelo clima especial proporcionado por sua presença.
Muitos prêmios vieram em sua jornada. Reconhecimentos naturais por seu talento e enorme dedicação. Entre artigos premiados em congressos acadêmicos e livros de sua autoria que foram reconhecidos e vendidos nacionalmente, havia um reconhecimento que tinha um lugar especial no coração da professora.
Ela guardava com carinho uma plaquinha de metal, já muito gasta pela ação do tempo, e que contava com os seguintes dizeres: “Querida professora Catarina, obrigado por iluminar nossos caminhos com sua generosidade e sabedoria. Levaremos para sempre em nossos corações seu exemplo e seus ensinamentos. Receba nossa homenagem como paraninfa da turma de Filosofia do ano de 1977.”
Quando Catarina assoprou as velinhas colocadas sobre seu favorito bolo de morango em comemoração aos seus 85 anos, ela não sabia que sua jornada na terra chegaria rapidamente ao fim. Catarina havia sido diagnosticada com uma doença degenerativa, que lhe daria, na melhor das hipóteses, poucos meses de vida. A amada professora não sabia disso, e mesmo que soubesse nada poderia ser feito – seu brilhantismo era simplesmente inócuo neste caso. Essa é a condição humana, cedo ou tarde. Nenhum prêmio poderia salvá-la. Sua honestidade não a retiraria dessa condição. O amor de seus familiares também não poderia surtir efeito algum sobre a doença.
Catarina não estava ciente porque a notícia foi dada, pelo médico da família, somente aos seus familiares. Os entes queridos teriam, então, que decidir sobre contar ou não para Catarina. Estavam diante daquilo que denominamos como dilema ético.
Devemos, nesse ponto, recordar o leitor de que a Ética é uma das áreas clássicas que permeiam a Filosofia, assim como a Lógica, a Epistemologia, a Estética, e tantas outras. Esta área estuda a moral, e parte fundamental de suas discussões trata daquilo que é certo ou errado na vida individual e também na coletividade. Dentro da etimologia, ética vem de ETHOS, que em grego antigo significa comportamento/conduta, em um sentido de costumes. Moral, por sua vez, vem do latim, como MORES, e significa costumes, referindo-se ao comportamento humano. Existem três grandes correntes filosóficas que debatem o que é socialmente certo, verdadeiro, aceitável: Teleologia, Utilitarismo e Deontologia.
- A ética teleológica surge, no Ocidente, com Aristóteles (caso tenha interesse, utilizamos parte do pensamento de Aristóteles em nossa pensata número 02 – vale a leitura!). Aristóteles, pensador grego que viveu entre 384 a.c. e 322 a.c., defende de certo modo um tipo de ética consequencialista, pautada pela ideia de que se agirmos de modo a tornarmos a coletividade “mais feliz” teremos uma conduta ética adequada – na visão aristotélica isso deve ocorrer por meio do equilíbrio entre virtudes humanas, evitando faltas e excessos.
- O Utilitarismo, por sua vez, ganha força no século XVIII na Inglaterra, especialmente pelas obras de Jeremy Bentham e John Stuart Mill – estes pensadores entraram em um consenso de pensamento que expressa, em síntese, que a meta da conduta humana é agir de forma que resulte o maior prazer com o menor dano possível para o maior número de pessoas possível, então todas as escolhas devem ser ponderadas nesses comparativos. Uma forma de ação ‘’útil’’ que se aproxima bem da Teleologia.
- Em sentido bastante diferente das correntes anteriores, encontra-se a Deontologia. DEONTO vem de dever, e significa, grosso modo, que devemos agir dentro de imperativos categóricos. Para o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), principal expoente dessa forma de pensar a ética, esses imperativos são regras universais de condutas que sejam amplamente válidas. Kant defende aquilo que ficou conhecido, portanto, como a ética do dever – devemos agir “corretamente”, o que foge da ideia de maximizarmos os resultados que serão alcançados por nossas ações. O foco aqui não está no resultado, e sim na correção de nossas ações em si.
Retornemos, agora, ao dilema ético vivido pela família de Catarina. A opção de comunicá-la sobre sua real condição de saúde estava nas mãos de seus entes queridos. Resultado: eles entraram em um consenso e optaram pelo silêncio, porque, na visão de um de seus familiares, “dessa forma Catarina viveria seus últimos meses de forma plena, feliz e sem preocupações.” A família entendeu que a “felicidade” de Catarina estava acima da verdade, e por isso não comunicou a professora sobre seu real estado de saúde. Perguntamos, então, ao caro leitor:
- Você concorda com essa visão da família?
- Se a responsabilidade fosse sua, por qual caminho você decidiria?
- Temos o direito de intervir desse modo na vida de outra pessoa diante do argumento de que podemos possibilitar a ela uma vida mais feliz?
- Estará, em certas situações, a felicidade acima da verdade?
- Como Kant decidiria? Como Bentham e Mill decidiriam?
- Devemos levar em conta quem foiCatarina ao decidirmos sobre o dilema ético ?
Para aqueles que tiverem interesse no assunto dos dilemas éticos, recomendamos a leitura do livro de Michael Sandel, professor da Universidade de Harvard, intitulado “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, do ano de 2015.
Como citar essa pensata: Romani-Dias, Marcello; Stiegler, Andressa. Dilemas Éticos: quando o choque entre dois valores morais nos perturba. Schola Akadémia, v.1, n.3, p. 1-3. Disponível em: www.scholaakademia.com, 2023.
Sobre os autores
Marcello Romani-Dias
Filósofo, Doutor e Mestre em Administração de Empresas. Bacharel em Administração. Atualmente cursando Licenciatura em História. É Professor Titular nos Programas de Pós Graduação em Administração de Empresas e Gestão Ambiental da Universidade Positivo. Tem interesse de pesquisa nas temáticas sobre Filosofia, Ética, Virtudes, Estratégia e de Sustentabilidade, e publica estudos nacionais e internacionais sobre estes tópicos.
Andressa Stiegler
Atualmente cursando Licenciatura em Filosofia. É barista e especialista em cafés. Tem interesse nas temáticas sobre Filosofia, Ética, Virtudes e Felicidade.