Alice era uma pesquisadora dedicada, mas ainda muito jovem. Seu trabalho árduo e apaixonado a levou a apresentar um artigo inovador em um importante congresso científico. No entanto, mesmo com sua competência comprovada, Alice não conseguia se livrar da sombra da síndrome de impostora.
Ao saber que seu artigo estava entre os indicados para um prestigioso prêmio, Alice experimentou uma mistura de emoções: empolgação, incredulidade e, acima de tudo, a voz insidiosa da dúvida. A ideia de receber um prêmio tão significativo parecia distante demais da realidade que ela tinha internalizado sobre suas próprias capacidades.
O dia da cerimônia chegou, e Alice sentou-se na plateia, observando nervosamente os minutos passarem. Enquanto os vencedores eram anunciados, seu coração batia mais rápido a cada nome pronunciado. Quando seu nome foi chamado como a vencedora, ela não conseguiu processar a informação. Será que tinham cometido um engano? O prêmio deveria ser dela?
A síndrome de impostora agia como um peso sobre seus ombros, tornando difícil acreditar que ela merecia estar no palco, recebendo aquele prêmio tão cobiçado. Ela hesitou, olhando ao redor, esperando que alguém mais se levantasse. Mas à medida que o silêncio aumentava, Alice percebeu que não havia engano. Ela era, de fato, a premiada.
Os aplausos da plateia a puxaram de volta para a realidade. Ainda incerta, Alice se levantou lentamente, sentindo cada olhar sobre ela. Enquanto caminhava em direção ao palco, uma batalha interna se desenrolava. A síndrome de impostora sussurrava que ela não merecia aquele reconhecimento, que estava apenas ocupando o lugar de outra pessoa mais competente.
Mas, no momento em que segurou o troféu em suas mãos, algo mudou. O olhar de admiração nos rostos da plateia, o calor dos aplausos e, acima de tudo, a validação do seu trabalho a fizeram perceber que ela pertencia àquele lugar. Alice não era uma impostora; ela era uma cientista talentosa e merecedora.
A lição que Alice aprendeu naquele dia foi valiosa. Ela percebeu que a síndrome de impostora não deveria definir seu valor. Ela tinha superado seus próprios medos e dúvidas, e aquele prêmio era uma prova concreta de suas realizações. A experiência a impulsionou a abraçar seu papel como uma mulher notável na ciência, inspirando outras mulheres a acreditarem em si mesmas e a desafiarem a síndrome de impostora que muitas vezes tenta silenciar suas conquistas.
Essa história de Alice nos leva a refletir sobre a autoconfiança das mulheres que pode ser comparada à resistência de uma planta frente à invasão de uma praga insidiosa: a cochonilha da dúvida. Assim como essa pequena praga pode se infiltrar silenciosamente e minar a vitalidade de uma planta, a dúvida pode corroer a autoconfiança da mulher, minando o crescimento e florescimento pessoal.
A cochonilha da dúvida muitas vezes se disfarça sob a folhagem da conquista. Mesmo quando as mulheres alcançam feitos notáveis, essa praga persiste, sussurrando que tais conquistas foram por acaso, que não são verdadeiramente merecedoras de seus sucessos. Essa incerteza intrínseca atua como um parasita, sugando a energia e a alegria que deveriam acompanhar as realizações.
Às vezes, a cochonilha da dúvida se alimenta das raízes mais profundas da autoimagem da mulher. Normas sociais e expectativas culturais muitas vezes plantam as sementes dessa praga, fazendo com que as mulheres questionem constantemente seu valor e habilidades. O ciclo de autorreflexão negativa pode ser tão prejudicial quanto a ação destrutiva da cochonilha em uma planta saudável.
A analogia nos lembra da importância de identificar e combater ativamente a cochonilha da dúvida. Assim como um jardineiro protege suas plantas, as mulheres precisam cultivar um ambiente mental saudável e nutritivo. Isso inclui a conscientização sobre as mensagens prejudiciais que recebem e a promoção de uma mentalidade que celebra as realizações, em vez de diminuí-las.
No livro “Tudo sobre o amor: novas perspectivas”, Bell Hooks pontua que o compromisso em dizer a verdade é a base do amor-próprio, uma vez que é a verdade que nos possibilita nos enxergar como realmente somos e abre o caminho para a autoaceitação. A história de Alice sobre a síndrome da impostora, nos convida a refletir sobre duvidar-se de si e a origem de uma autoestima frágil que muitas mulheres enfrentam na sociedade.
“A socialização machista ensina às mulheres que a autoafirmação é uma ameaça à feminilidade. Aceitar essa lógica equivocada prepara o terreno para a baixa autoestima” (Hooks, 2021 p. 98-99). Essa ideia estabelece uma dicotomia entre um “eu” artificial, moldado para agradar aos outros, e um “eu” mais autêntico, mantido nas sombras. Nessa dinâmica, o “eu autêntico” das mulheres muitas vezes fica oculto, enquanto o “eu falso” é apresentado ao mundo na esperança de obter validação e aceitação.
Hooks (2021 p.100) diz “[…] as mulheres podem sentir necessidade de fingir que amam a si mesmas, para projetar confiança e poder para o mundo exterior e, como consequência, sentirem-se num conflito psicológico, desconectadas de seu ‘eu’ verdadeiro. Envergonhadas pelo sentimento de que nunca poderão deixar ninguém saber quem realmente são, elas podem escolher o isolamento e a solidão por medo de serem desmascaradas.”
Seguindo essa linha de pensamento, as mulheres podem internalizar a crença de que aquilo que as pessoas afirmam gostar é, na verdade, seu “eu falso”. Como podem sentir-se verdadeiramente valorizadas e dignas de amor e reconhecimento se a versão de si mesmas que todos conhecem e apreciam não é genuína? Na história de Alice, ela construiu a impressão de que a cientista notável e autora de todas as pesquisas era uma representação falsa de si mesma, resultando na sensação de que seu “eu” verdadeiro não merecia receber o prêmio em questão.
Uma mulher que enfrentou a necessidade de buscar seu “eu” mais autêntico foi a pensadora Simone de Beauvoir. Em seu livro “O Complexo de Cinderela”, a autora Collete Dowling relata um episódio marcante da vida de Simone descrito em “Prime of Life“. Nesse relato, Simone aceita uma posição de professora em Marselha por um ano, distante de Sartre, seu companheiro. Ao perceber o quão perigosamente fácil era existir subjugada por alguém mais fascinante, a quem podia idealizar e na sombra de quem se sentia pequena e segura, Simone reconheceu sua íntima dependência de outros. Ao aceitar o trabalho em uma cidade distante e estar sozinha, ela viu-se obrigada a traçar seu próprio caminho, sem ajuda externa. Nesse período de sua vida, Simone experimentou situações que lhe permitiram resgatar sua autenticidade, ou, nas palavras de Colette, “recuperar sua alma”. Refletindo sobre o ano que passou, Simone afirmou: “Eu sabia que agora podia contar comigo mesma” (Dowling, 1995, p. 202).
Diante destas reflexões, percebemos a importância de estar imersa em um ambiente que celebre a nossa verdadeira essência, reconhecendo e reforçando positivamente os atos de autoafirmação e a singularidade espontânea que reside em cada uma de nós. Ambientes e relações marcados por influências negativas atuam como a cochonilha que ameaça nossa planta chamada autoconfiança, drenando seus nutrientes e impedindo seu fortalecimento e crescimento.
Nesse contexto, o processo de individuação de Jung emerge como uma etapa crucial na jornada de superação da síndrome de impostora. Conforme mencionado anteriormente, encontramo-nos divididas entre um “eu” artificial, moldado por normas e expectativas sociais, que nos torna dependentes das regras e objetivos ditados por outros.
Esta pensata é um convite para que você, cara leitora, reflita sobre as pessoas que desempenham o papel de lavanda em seu jardim interior. Assim como a lavanda, com seu perfume suave e agradável, repele pragas para manter o jardim saudável, as pessoas que acreditam em nosso potencial e estimulam o nosso melhor agem como preciosos presentes na vida. São aquelas que enxergam nossas qualidades mesmo quando duvidamos delas, constituindo um apoio valioso. Essas “lavandas humanas” são indispensáveis, embora seja igualmente crucial que nossa planta de autoconfiança desenvolva anticorpos para se defender das cochonilhas da dúvida.
Referências utilizadas pelas autoras:
Dowling, C. (1995). Complexo de Cinderela. São Paulo: Melhoramentos. (Original publicado em 1981).
Hooks, Bell. Tudo Sobre o Amor: Novas Perspectivas. São Paulo: Editora Elefante, 2021.
Como citar essa pensata: Barbosa, Aline dos Santos; Bacchiocchi, Luísa. O Perfume de Lavandas e a Cochonilha da Dúvida: Uma Jornada Contra a Síndrome de Impostora. Schola Akadémia, v.2, n.11, p. 1-3. Disponível em: www.scholaakademia.com, 2023.
Sobre as autoras
Aline Barbosa
Filósofa, Doutora e Mestra em Administração de Empresas. Bacharel em Comunicação Social. Atualmente cursando Licenciatura em História. É Professora Permanente no Programa de Mestrado em Administração e Desenvolvimento Empresarial (MADE) da Universidade Estácio de Sá. Tem interesse de pesquisa nas temáticas sobre Filosofia, Ética, Amor, Desigualdade de Gênero nas Organizações e Sociedade, Violência contra as Mulheres, Carreiras não Tradicionais, Estratégia e de Sustentabilidade, e publica estudos nacionais e internacionais sobre estes tópicos.
Luísa Bacchiocchi
Mestranda em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getulio Vargas. Graduada em Administração de Empresas e Pós-Graduada em Liderança e Inovação. Atualmente trabalha com novas abordagens e metodologias ativas em educação corporativa na FGV. Tem interesse de pesquisa nas temáticas sobre Filosofia, Comportamento Humano e Combate ao Sexismo.